Emails desmontam versão à CPI e mostram atuação de secretário de Guedes em MP que atrasou compra da Pfizer
Emails entregues à CPI da Covid no Senado mostram que o secretário-executivo adjunto do Ministério da Economia, Miguel Ragone de Mattos, acompanhou as discussões das minutas da MP (medida provisória) das vacinas. À comissão, porém, Mattos afirmou que a pasta tratou do assunto na fase de sanção.
A MP entrou na mira da CPI porque um dispositivo que facilitava a compra de imunizantes de Pfizer e Janssen sumiu da versão publicada em janeiro. Os debates foram feitos em dezembro, e o texto foi sancionado em março.
As farmacêuticas exigiam que a União assumisse riscos em caso de efeitos colaterais. Para isso, uma das minutas continha um artigo que autorizava o governo a constituir garantias ou contratar seguros.
Como a Folha mostrou nesta terça-feira (19), a resistência do presidente Jair Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes (Economia), tanto por negacionismo como pela preocupação com risco fiscal, atrasaram a compra das vacinas da Pfizer.
Agora a CPI da Covid no Senado quer saber por que um dispositivo que facilitava a aquisição de vacinas da Pfizer e da Janssen foi eliminado da MP publicada em janeiro. Uma das minutas autorizava a União a assumir riscos e custos de eventuais efeitos adversos dos imunizantes, exigência das farmacêuticas.
A pedido do vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Economia, Saúde, Justiça, Casa Civil, AGU (Advocacia-Geral da União) e CGU (Controladoria-Geral da União) entregaram documentos sobre a MP das vacinas.
Randolfe pediu minutas e posicionamentos, além de solicitar “notas técnicas, pareceres, comunicações com outros órgãos” no processo de elaboração da medida provisória.
Em despacho enviado à CPI, Mattos afirmou que “a manifestação do Ministério da Economia relativa à referida medida provisória restringiu-se à fase de sanção do projeto de lei de conversão nº 1, de 2021, no sentido de não haver na matéria tratada competência afeta”.
Em emails entregues pela AGU, porém, Mattos aparece entre os destinatários de duas mensagens sobre os rascunhos da MP. Procurado, o Ministério da Economia reconheceu que participou de “reuniões na fase final de elaboração do texto”.
A primeira mensagem eletrônica é das 12h22 do dia 23 de dezembro. “Conforme combinado, encaminho anexa minuta da medida provisória discutida na reunião de hoje”, escreveu Kamyle Medina Monte Rey, supervisora nas Subchefias de Política Econômica e de Articulação e Monitoramento, da Casa Civil.
Mais dois servidores da Economia constam como destinatários —Gustavo Lino, analista de Planejamento e Orçamento, e Mario Neves, diretor do Departamento de Programas das Áreas Social e Especial.
De acordo com a Economia, não é incomum que as áreas técnicas da pasta sejam chamadas a essas agendas, mesmo que não esteja definida a competência do órgão para a assinatura das propostas.
Outro email, das 13h36 de 29 de dezembro, também da Subchefia de Articulação e Monitoramento, da Casa Civil, traz Mattos de novo entre os destinatários.
“Conforme reunião realizada agora pela manhã, sob a coordenação da Casa Civil, encaminhamos a versão final da minuta de medida provisória”, disse a mensagem sem signatário.
“Ressaltamos que todos os documentos, inclusive os pareceres, devem estar no Sidof [Sistema de Geração e Tramitação de Documentos] até as 16h de hoje.”
A partir daí, Mattos não constou mais das mensagens eletrônicas apresentadas à CPI. A MP foi publicada no dia 6 de janeiro sem acatar a exigência das farmacêuticas.
Segundo a Economia, em relação às reuniões citadas, não houve por parte da SOF (Secretaria de Orçamento Federal) nem do secretário-executivo adjunto sugestão de inclusão ou exclusão do artigo que facilitava a compra dos imunizantes.
“As opiniões eventualmente emitidas pelos técnicos da secretaria presentes nas reuniões citadas se referiram apenas às necessidades de estimativas de impacto orçamentário, conforme exigido pela legislação vigente, no caso de eventual responsabilização da União”, afirmou a pasta.
À CPI Guedes entregou um ofício com um despacho de Mattos. O documento omite a participação de técnicos da pasta nas reuniões que discutiram a elaboração da MP e o recebimento de versões do texto por membros do ministério.
Além disso, uma nota técnica de Marcilândia Araújo, coordenadora-geral de Assuntos de Saúde e Atos Normativos do Ministério da Saúde, mostra o envolvimento do time de Guedes desde o início do processo.
“Primeiramente, cumpre salientar que as três minutas de medida provisória foram objeto de discussão em reuniões, com a participação de diversos órgãos, como Presidência da República (Casa Civil, Secretaria-Geral e Secretaria de Governo), Ministério da Saúde, Ministério da Economia, Advocacia-Geral da União e Controladoria-Geral da União”, escreveu.
Em outro documento, ela lembrou que o dispositivo era “uma das cláusulas exigidas pelos fabricantes para o fornecimento de vacinas contra Covid-19”. Os autos traziam memorandos da Pfizer e da Janssen.
Nota técnica da CGU chancelou a ideia. “Sem adentrar no mérito dos aspectos relacionados às finanças públicas, entende-se que esse instrumento é pertinente”, escreveram Rodrigo Eloy Arantes, auditor federal de Finanças e Controle, e José Paulo Julieti Barbiere, diretor de Auditoria em Políticas Sociais.
Em parecer, Fernando Luiz Albuquerque Faria, diretor do Departamento de Análise de Atos Normativos da AGU, afirmou que, “diante do fato de que a vacina contra a Covid-19 teve um tempo de testagem menor comparado com outras vacinas, mostra-se razoável que os laboratórios demandem que o Estado assuma o risco por efeitos adversos”.
De acordo com Faria, constituir garantia não afronta a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal).
Técnicos da Saúde afirmam não saber o motivo da supressão do dispositivo. Sob o juramento de falar a verdade em depoimento na CPI, o ex-secretário-executivo Elcio Franco culpou a equipe de Guedes.
“Aquele material [artigo da responsabilidade, garantias e seguro] foi retirado do texto dela [a minuta], por falta de consenso, como foi colocado. E foi particularmente do Ministério da Economia.”
Segundo relatos à Folha, havia também resistência da própria chefia da Saúde em reconhecer que o portfólio de vacinas deveria ser ampliado. Essa resistência era fortalecida por declarações de Bolsonaro.
Na leitura desses técnicos, havia soberba nas negociações. O ex-ministro Eduardo Pazuello (Saúde), que chegou a chamar as cláusulas da Pfizer de leoninas, afirmou em 21 de janeiro que a pasta receberia avalanche de propostas.
Em fevereiro a pressão por ampliar a oferta de doses aumentou.Nesse cenário ganharam importância as negociações pela Sputnik, com a União Química, e da Covaxin, via Precisa Medicamentos.
“As investigações da CPI apontam que nós temos indícios do porquê negligenciavam tanto a vacina da Pfizer. É porque queriam Covaxin, é porque queriam os negócios com a Davati, é porque queriam os negócios com a exótica World Brands [para compra da Coronavac pelo triplo do preço]. Estavam na prática querendo transformar a vacina em negócio, e não enfrentar a pandemia”, disse Randolfe.
Procurado, o Ministério da Saúde disse que o tema era da Casa Civil, que, por meio da Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social), afirmou que “todos os esclarecimentos solicitados pela CPI já foram devidamente encaminhados pelas pastas demandadas”.
O Ministério da Economia informou que participa de todas as reuniões convocadas pelo Palácio do Planalto no intuito de estar disponível a contribuir caso o assunto em questão necessite, mas não se posiciona em matéria que não está sob sua competência.
O órgão ressaltou que não recebeu solicitação formal para elaborar pareceres sobre o assunto, “motivo pelo qual não foram proferidos”. Sobre os debates, a pasta afirmou que efetivamente houve participação de seus servidores em reuniões de caráter técnico.
Especificamente em relação ao artigo que previa a responsabilização da União por eventuais efeitos adversos, o ministério informou que “não se posicionou contrariamente”.
Segundo a pasta, mesmo não sendo coautor da MP, Guedes determinou que as equipes técnicas deveriam colaborar, se demandadas, e não deu orientação para que se posicionassem contrariamente ao artigo.
William Castanho, Mateus Vargas e Bernardo Caram, Folhapress